sábado, 27 de junho de 2009

Literatura

IRONIA

Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito, sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!

(Raul de Leoni)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

METRÔ LINHA 743

(Raul Seixas)

Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que tava sendo vigiado
Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Disse: O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente
Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado!
Desculpe minha pressa, fingindo atrasado
Trabalho em cartório mas sou escritor,
Perdi minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743!!

O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão,
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos
Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?
Se é documento eu tenho aqui...
Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí!
Eu quero saber o que você estava pensando
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Metrô linha 743

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
Eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete
Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiéte
Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs
Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado:
Quem será este desgraçado dono desta zorra tôda?
Já ta tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas o negócio é que da muito bandeira
da bandeira demais meu Deus
Cuidado brother, cuidado sábio senhor
É um conselho sério prá vocês
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês
Metrô linha 743

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Sweet Blues for You

Os acordes do pianista solitário preenchiam o ar. A fumaça preenchia o lugar. O negro tocava, com paixão, o mais puro blues. As pessoas não esperavam outra coisa, seus pensamentos acompanhavam o compasso. Lento, violento.
O blues preenchia aquelas pessoas.
O homem mal era visível, apesar de estar no meio do salão, em frente ao palco, sua mesa solitária era a primeira, a névoa, espessa e seca, envolvia-o. Sua cabeça estava baixa, coberta por um chapéu preto, seus olhos, ocultos por óculos escuros. Um cigarro pendia de sua mão, mas ele quase não fumava. Assim como o whiskey em sua mesa que ele quase não bebia.
O blues era um estado de espírito. O cigarro e o whiskey ajudam a atingir tão magnífico estado. A solidão. Amores fodidos e sonhos perdidos também. Ele não precisava destes catalisadores. Não nesta noite.
Deu uma tragada profunda, a chama do cigarro brilhando mais forte. A seus pés, um estojo. Seu contrabaixo elétrico. Seu melhor amigo, a fonte de onde jorravam seus pensamentos. Seu dom e sua maldição.
Agora, a última banda da noite se apresentava no palco. O cheiro do cânhamo proibido era intenso. Um odor agradável. As pessoas sorriam, anestesiadas. O frontman o reconheceu. Encerraram a música e o chamaram ao palco. Ele não hesitou. Estava ali para isso.
Sentou-se de frente para a platéia. Deitou o estojo e retirou o velho contrabaixo de dentro. Era preto, mesmo o escudo. Sorriu para seus colegas de palco. Disse-lhes para tocarem um clássico. Os outros sorriram, concordando.
Começou a tocar, sem pensar no que fazia. Seus dedos sabiam o caminho, então os deixou passearem. A música falava mais alto sempre. Ela simplesmente fluía. Como o suor no corpo dos amantes, como a saliva do faminto.
O pianista reconheceu os primeiros acordes e, após tragar demoradamente um cigarro do diabo e atirá-lo às pessoas da platéia, acompanhou o baixista.

“...in the house of Love...”

Sua voz grave fez as pessoas se arrepiarem. Mesmo os músicos à sua volta se impressionaram. Agora, já cientes da música, também o acompanhavam.
Ele, por sua vez, via à sua volta os espíritos do Blues. Não gostava de metafísica, de religião ou algo do tipo. Seu deus era a música. Mas, pensou consigo mesmo, se acreditasse, teria visto Mojo ali e outras entidades do vodu ao seu redor. A idéia o empolgou. Estava invocando os espíritos protetores de uma religião negada. Ele, um branco, encarnava os negros norte americanos, oprimidos e já mortos.

“I know the word… that you love to…hear”

Mas, só acreditava na música. Não gosta de homens ou de animais. Só de notas e acordes. Guitarras e bumbos. Cordas e teclados. Achava que a bebida despertava a poesia imanente em todos os homens e, por isso, era necessário. A bebida libertava. Só o bêbado era sincero. Só o bêbado sorria.

“...I can see you...”

Vivia a vida em grandes goles. Mas, sua garrafa estava já no fim. Seu pé derrubou o estojo, com o veludo caído em sua direção.

“I know your deep and secret fear”

Quando a música cessou, os músicos abandonaram seus instrumentos para cumprimentá-lo, honrados, fascinados por tocarem a seu lado. Enquanto isso, ele estava abaixado, pegando algo que caíra do estojo.
O sorriso do guitarrista morreu quando viu o cano negro. A bala cravou-se no crânio do bateirista, que morreu sorrindo. O Bluesman assassino virou-se para a platéia e disparou. Centenas de balas, vomitadas pela submetralhadora.
Engoliu o cano. E o chumbo. Amava a vida. Amava a música. Sua vida era a música. Seu último acorde foi o estalido abafado do gatilho.

O Casamento do Céu e do Inferno

"Sem Contrários não há progresso. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência Humana.
Desses contrários saem o que os religiosos chamam Bem e Mal. O Bem é o passivo que obedece à Razão. O Mal é o ativo que vem da Energia. O Bem é o Céu. O Mal é o Inferno"

"Rintrah ruge e balança suas chamas no ar carregado
Nuvens famintas balançam-se nas profundezas

Outrora manso, e em uma perigosa trilha
O homem justo manteve sua rota
Pelo vale da morte.
Há rosas plantadas onde crescem espinhos.
E na mata estériol
Cantam as abelhas melíferas

Então, estava fundada a perigosa trilha:
E um rio e um regato
Em cada penhasco e tumba;
E nos ossos embranquecidos
A argila vermelha despontou.

Até que o vilão saia dos atalhos fáceis
Para andar nos atalhos perigosos e dirija
O homem justo a climas estéreis.

Agora a serpente sorrateira anda
Em suave humildade.
E o homem justo se enraivece nas terras remotas
Onde perambulam leões

Rintrah ruge e balança suas chamas no ar carregado
Nuvens famintas balançam-se nas profundezas"

Do obrigatório "The Marriage of Heaven and Hell" de William Blake.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Literatura

Carlos Drummond De Andrade

A mão suja

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.
E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo da casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
mão limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

E era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
– o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil, reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!

Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura – transparente –
colar-se a meu braço.

Literatura

Estava eu em minhas leituras corriqueiras pela internet quando me deparo com essa CARTA
Muito interessante, aqui vai trecho da mesma:
"Estariam tentando ser corajosos, talvez, para que nunca mais precisem ter medo? Será que buscavam aquilo que Bob Dylan canta em It's Alright, Ma (I'm Only Bleeding): "Você se perde, reaparece, descobre de repente que não tem nada a temer"? Ousar se perder para possivelmente se reencontrar, e ter a coragem necessária para isso, pois não se pode ter a certeza de um dia ressurgir. Quando você finalmente se entrega. Aquele momento desprovido de peso! E você terá a ousadia de realmente ser aquele no qual se torna, aquele que você não pode conhecer de antemão? Como Rimbaud, quando levou a cabo uma ruptura total e parou de escrever a poesia que revolucionou a literatura francesa e européia e simplesmente desapareceu aos 25 anos de idade ao se mandar para o Iêmen e para o nordeste africano, ressurgindo como outra pessoa, aparentemente com outras qualidades e talentos, e dizendo: Je est un autre, o que na verdade contém um erro gramatical, pois é óbvio que é Je suis un autre, sou outro, mas ao dizê-lo com o verbo na terceira pessoa ele fez de si mesmo um objeto e se alienou. Então ele se esqueceu, e depois se perdeu; é o que arriscam interpretar meus amigos que sabem francês."