sábado, 18 de julho de 2009

How Blue Can You Get?

-Matar é errado, bro.
-Morrer é errado e no entanto...- sua voz morreu.
-No entanto as pessoas morrem.
-Outras voltam para nos atormentar. Diga, eu estou tão ruim assim? Já estou tendo alucinações!- Sua voz era quase divertida.
-Claro que não. Eu morri entregando minha vida ao Senhor. Meu último suspiro foi em nome dEle. Eu me tornei um anjo no pós vida, bro.

A gargalhada explodiu em sua boca, seus olhos se enchendo de lágrimas. Teve de colocar a garrafa no chão. Não sabia se era pior ver o fantasma de um amigo há muito
morto ou ter de ouvir as besteiras que ele lhe dizia.

-Você, um anjo, está aqui na Terra, conversando justamente comigo! Você tá no inferno. Sartre, lembra?
O fantasma riu.
-Além disso- ele continuou- quem falava “bro” era o Pingado. Você é uma alucinação das mais terríveis.

Era engraçado, ao final das contas. Rever um grande amigo, em quem há muito não pensava. Ele ainda era do jeito que se lembrava. Cabelos grandes, que terminavam, abaixo do ombro, em grandes caracóis dourados. Usava um bigode e seu queixo também era coberto por pêlos. Parecia um mosqueteiro. E um hippie. Sua túnica branca era a mesma que ele usara nos idos anos 1970, inspirado em Robert Plant. Mas usava auréola agora.

-Nada. Se eu sou feito das suas lembranças, elas é que são uma bosta. Uma bagunça. Você não se lembra de quase nada do que viveu. Se visse um filme da sua vida, acharia que colocou o vídeo errado para rodar. Você era um caos e não fez muita coisa para melhorar.

As palavras continham uma seriedade, que o assustou. Não que fosse intencional. Paulo não faria isso com um amigo. Não com o karma andando por aí em sua Harley, com seu caderninho, anotando os erros e acertos das pessoas. Mas, Paulo estava morto e precisava parar de levar essa conversa a sério.

-Sabe- disse o fantasma- você deveria levar essa conversa a sério.
-E você deveria parar de ler meus pensamentos.
-Eu não estou lendo. Nós estamos misturados. Lembra?
-Vá direto ao ponto. Por que você veio?- Ele se levantou. Caminhou até sua estante, atravessando um lençol embolado no chão e uma caixa de fotos, caída. Colocou a garrafa de whiskey em cima da prateleira, ao lado de uma fotografia sua, vestido de terno e gravata pretos e uma garota, os cabelos de um castanho claro que o fazia pensar em dias melhores. Pegou um maço de cigarros uma prateleira acima.
- Por que você precisa de mim, bro. To preocupado com você. Essa merda toda em que você se enfiou. Essa fossa. Isso tudo vai piorar agora.
-É...a Yoko morreu.
-Sério? Caralho, essa eu precisava ver. Ela destruiu os Beatles.
-Não essa...-ele disse, rindo- a nossa Yoko. Lembra? Era assim que você a chamava.
-É...eu lembro. Tava só tentando te animar. Ela mexeu mesmo com você, não foi?

“Mexeu” era dizer pouco. Ela era o amor de sua vida. A razão de sua existência. Mesmo quando ela ferrou com tudo, sua vida passou a ser esquecê-la, apagá-la da memória, profanar as lembranças boas.

-Me diga uma coisa, Deus toca teclado?
-Bro, e como toca!- disse o fantasma empolgado- Mas, não é um teclado. É um piano de cem mil teclas feitas de mármore branco e preto. O som se transforma em cores e toda a realidade estremece. O próprio tempo fica distorcido.
-E por isso que você só chegou até mim hoje? Ficou ouvindo o concerto celestial e me deixou levando na bunda esse tempo todo?
-Bro, me perdoe. Desculpa por não ter aparecido antes. Mas, acredite, só agora as coisas ficaram pretas. Já decidiu o que fazer?
-Claro. Eu sou o compositor, lembra?
-Pois, preste atenção. Você tem escolha. Não deixe esse véu de fumaça se fechar. O mundo não é preto e branco, como você pensa.
-Não. Ele é multi colorido, como você enxergava. Seu cérebro cheio de ácido. E, ainda assim, olha onde você foi parar. Uma alucinação das mais toscas.
-Se eu sou uma alucinação, como eu sei que o telefone vai tocar?
O telefone tocou, despertando-o.
-Marcos?- disse, por trás de um milhão de quilômetros transformados em ruídos na linha, a voz chorosa marcada pelo sotaque.
-Quem? Anne?
-Carol... is dead.

Yoko estava morta. Afinal de contas. O telefone ficou pendurado em sua mão. Ouvia o choro engasgado do outro lado da linha e nada mais. Sua cabeça parecia a “Vinte e Cinco” em véspera de natal.

O sonho acabara. Literalmente.

Mais tarde, no avião, concluiu que despertara ao segundo toque do telefone. O primeiro havia sido transformado, pelo seu Inconsciente, na previsão de seu amigo.

O sonho, com o anjo e tudo mais, havia sido coincidência. Meramente.

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