-Sr. Afonso?
Estava na fila há quase dois anos e acabou surpreendido pela voz angelical que lhe falava.
-Sim?
-Senhor, estamos analisando seu processo. Aqui estão seus pecados, se o senhor fizer a gentileza de aguardar, chamá-lo-emos para que venha se defender.
As palavras foram acompanhadas por um grosso volume de capa avermelhada, com dourados caracteres garrafais: PECADOS.
-Deve haver algum engano...
-Engano nenhum. Nós nunca nos enganamos.
-Mas, aqui estão meus pecados, certo? Eu não posso ter cometido todos esses pecados! E os meus atos de bondade? Onde estão?
-O senhor morreu com sessenta anos. É muito tempo para que um humano cometa pecados. Neste volume estão todos os seus pecados remanescentes, já descontados seus atos de bondade genuína. Claro que não contamos aqueles que o senhor praticou pensando somente em si mesmo.
-Mas...
-Por gentileza, senhor. A fila é grande. Não posso me demorar mais. O seu caso será Julgado daqui a algum tempo.
Tempo. Perguntou-se quanto tempo mais ficaria ali naquela antecâmara. Por um lado, lembrou-se de que não tinha mais nada para fazer e que Eternidade é muito tempo. Afastou-se da fila e sentou-se em uma grande poltrona dourada.
Capítulo I: Infância
4 de Abril de 1953, 18 h e 51 m: Apanhou um brigadeiro da mesa, desobedecendo sua mãe, no aniversário de seis anos de seu irmão mais novo.
4 de Abril de 1953, 19 h e 14 m: Colocou a culpa no irmão.
4 de Abril de 1953, 19 h e 16 m: Riu do irmão, que chorava após ter sido, injustamente, repreendido.
Foram-se quase dois meses e o detalhismo dos fatos narrados só não lhe aborrecia mais do que o incômodo que suas costas sofriam ao serem pressionadas contra o acento dourado. O ar era fresco demais, as pessoas eram silenciosas demais graças a um grande aviso gravado em uma placa de ouro:
SILÊNCIO NA ANTECÂMARA: OS PECADORES TERÃO A ETERNIDADE TODA PARA SE LAMENTAR.
Aquele devia ser o purgatório. Mas, não era. Para todos os efeitos, ele ainda estava no Céu
Um homem em um terno escuro se aproximou. Estava empecável, alinhadíssimo. Os cabelos engomados e penteados para trás, realçando o discreto par de chifres avermelhados que lhe brotava, elegantemente, da testa.
-Sr. Afonso?
-Pois não? Vão julgar meu caso?
-Lamento, creio que ainda têm muitos outros antes do seu. Permita que eu me apresente, sou Abraxas, advogado.
-Eu não pretendo usar um advogado agora, senhor. Receio que não haja meios de safar desta. Não poderia engambelar o Senhor.
-Certamente que não, mas olhe, há muitas brechas na Lei. A Bíblia toda está repleta de casos de pessoas que contornaram rígidas posições. Algumas com Sua benção. Acredite. Não posso te prometer o Céu, mas o livrarei do Inferno.
-Sei, e o que você ganha com isso? Minha alma?
-Exatamente.
Ao ver o espanto no rosto de seu cliente em potencial, Abraxas sorriu.
-Nada tão supérfluo. Eu estava brincando. Sabe, é uma brincadeira interna entre nós aqui no Tribunal. Perdoe-me. Veja bem, como o senhor, não temos muita coisa para fazer. Somos advogados. Quando a Estrela da Manhã se revoltou, houve a formação de duas facções: os que permaceram fiéis e os revoltosos. O que poucos sabem, é que houve uma terceira. Poucos sabem porque nenhum dos dois lados gosta de assumir nossa existência. Sabe, ninguém gosta muito de advogados (a não ser quando precisam de nós, o senhor mesmo terá a chance de testemunhar minhas palavras). Enfim, não temos muito o que fazer, fomos banidos do Céu, mas somos mal vistos no Inferno. Por isso, unimo-nos e abrimos um grande escritório no Limbo para que pudéssemos passar o tempo. As causas boas como a do senhor podem nos render quase um milênio de diversão. E então, posso ver o seu processo?
Fim da Parte I
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Vocês vão continuar né?
ResponderExcluirAfinal... não tem mais ninguém pra matarem mesmo!! rsrs
Seria interessante continuarem, só pra variar... rsrs
ResponderExcluirVcs não imaginam o mérito que nós temos só em começar alguma coisa
ResponderExcluir=D
Animo meninos!!!
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