sexta-feira, 23 de outubro de 2009

The Thrill is Gone

A bebida cor-de-mel tinha o gosto amargo da perda. Sentia-se mergulhado até o pescoço naquele copo fundo que lhe devolvia o olhar, zombeteiramente.
Seus olhos se encheram de lágrimas, nem tanto pelo efeito do álcool lhe rasgando a garganta quanto por ter perdido a mulher que amara. A única. A mulher com quem achara que poderia ser feliz.
Era um tolo, ponderou, se antes pensava ter idéia do que era a infelicidade. Seus olhos, incongruentes, buscavam fixar-se em algo no bar escuro, mas em vão, os clientes aleatórios entravam e saíam a uma velocidade alarmante. Bêbado como estava, tampouco conseguia entender uma palavra do inglês carregado do lugar. Para todos os efeitos, estava cego e surdo. E seu paladar estava amortizado pela nicotina e pelo álcool.
Tentou se levantar. Fraco, caiu com um baque de volta ao lugar, protegido apenas pelo encosto de madeira do banco, em que se apoiou com o braço. A mão livre segurava o cigarro.
Com o impacto, sentiu o mundo balançar enlouquecido. Algo naquela inconsistência toda fazia sentido. Riu o riso dos ébrios, de si mesmo, das pessoas, da vida...e dela. E virou um moribundo novamente.
Os cabelos castanhos não lhe saíam da mente. A voz alegre, sonora, que lhe aquecia. Os olhos, profundos e gentis, era do que mais sentia falta. A forma como eles lhe buscavam, pareciam tão sinceros, tão puros. Ela era alta, quase da sua altura, e magra, o contrário da forma das mulheres que normalmente lhe atraíam. Podia ouvi-la, zombando dele, humilhando-o.
Mas, ela não havia feito isso. Era o que ele mais queria. Um motivo a mais para odiá-la.
Ele podia ouvir os passos. Seus passos, ecoando no apartamento escuro. Estava animado, seu coração batia agitado, ansioso por vê-la. Não podia se conter, pois há muito não se viam. Ele ficara fora por quase um mês, escravo do maldito contrato, em que pensara como um caminho para seus sonhos, mas que, percebia, conduzia-o na direção contrária. Cada vez mais para baixo.
Pensou em seus amigos, os outros Evangelistas. A imagem que possuía deles em sua mente estava distorcida, borrada. Quase podia senti-los mudando, transformando-se em outros, estranhos, distantes. Estavam cada dia mais distantes, mais estranhos uns aos outros. Menos ele, Marcos. Era uma montanha, imutável, fechado, uma alma isolada.
Alma. Não acreditava em alma, em espírito, em Deus ou no Diabo. Só havia um diabo no que lhe dizia respeito. E possuía lábios inacreditáveis. Lembrou-se de como Paulo misturava essas coisas abstratas de uma forma tão coerente que quase o fazia acreditar. Senão, fazia-o pensar em como o rapaz convencia tantas garotas de que aquilo tudo era a verdade. Pensava se, não fosse sua aparência de “anjo do rock”, as garotas cairiam tão facilmente naquela conversa.
Lembrou-se do pai que não conheceu. Imaginou-o vestido em um terno preto, andando por um corredor escuro, o som de seus passos ribombando nas paredes, o coração acelerado, o cigarro aceso na ponta dos dedos. O rosto diante do espelho, o seu rosto. Ele havia se tornado sua própria figura paterna, adentrando o interior de sua mente, o som do baixo em que se tornavam as batidas cardíacas. Seus cabelos, feitos de sombra, ocultando seus olhos feitos de fogo.
O fogo da ponta de seu cigarro, as cinzas. No final, o cigarro era a metáfora suprema para a vida. A partir do momento em que se acende, ela vai se esvaecendo, espalhando-se pelos ventos, e tudo que resta é uma necessidade de mais, de ter tido mais. E as cinzas. E a fumaça que empesteia o ambiente, dando aos outros a ligeira sensação de que algo passara por ali.
A angústia lhe possuía. Não conseguia mais se lembrar dEla. A imaculada visão de como era quando se conheceram. Não se lembrava mais dos momentos de amor, a amizade que possuíam. Tudo estava envenenado. Só o rosto avermelhado e marcado de suor lhe vinha à mente.
Quando saiu do corredor, abrindo a porta do quarto dela, no apartamento em que compartilharam por tanto tempo, encontrando-a, sob a luz das chamas que queimavam velas, sob um corpo masculino, em um ritual tão antigo quanto a própria vida. Ele a observou por um momento que durava séculos, em silêncio, semi oculto pelas sombras.
Naquele momento, o homem mais solitário que já existiu, ele os ouvia, as respirações pesadas, seus suspiros e oaristos. Naquele momento, ele sentiu uma parte de si morrendo. A parte que ele havia descoberto a tão pouco tempo, um pedaço de que se descobrira gostando, admirado de que existisse. Uma parte que mostrava aos amigos, sem medo das brincadeiras, da reprovação, e que se acostumara.
Não há palavras. Apenas um homem, e digo isso sem sexismo, sabe o que é imaginar o ser amado nos braços de um outro homem. É algo que atinge todo o instinto do gênero masculino, afetando os milhares de anos de existência sobre a superfície inóspita de nosso planeta. Algo imanente à nossa condição.
Vê-la daquele jeito...
Ela o percebeu. Seus olhares se encontraram e , por um momento, ela não pareceu surpresa. Nem pareceu se importar, ela estava sendo ali e ele, simplesmente, estava ali. Lá, mundos de distância dela e de seu amante. E aquela visão, aquela profanação da imagem que ele criara dela, o assombraria durante o resto de sua vida.
Um homem, negro, o cabelo raspado rente ao crânio, os lábios grossos, de onde pendia um cigarro de palha, magro e de aspecto doentio lhe observava. Seus olhos negros envoltos em uma poça amarelada, seca.
O homem sorria e falou com o uivo de um coiote.
-Agora, você tem o Blues.
Então, Marcos acordou, o pescoço dolorido, caído com a cabeça sobre a mesa. Sentiu-se enjoado e tonto. Com as mãos em sua nuca, estava Lucas, seu parceiro e melhor amigo, o homem com quem dividia os sonhos e uma ligação de quase fraternidade.
-Vamos para casa, Marcos. Você precisa sair desse lodo.

2 comentários:

  1. Só passando para desejar "bom fim de semana" a vcs meninos!

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  2. Cara, a analogia do cigarro é realmente ótima. . .

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