-Então, o que achou?
-Uma grande merda- respondeu.
-Z.Z. Top?
-Não...- desviou os olhos para o televisor a cores, um verdadeiro milagre - se bem que esses caras não deveriam ter saído de seus caminhões.
Lucas riu. Aquele sarcasmo era a virtude e o pecado de seu melhor amigo. Um sarcasmo a que havia se acostumado a uma centena de anos, desde quando eram pequenos. Enquanto ninguém se metia com aquele garoto metido a engraçadinho, Lucas ofereceu-lhe a amizade. Desde então estavam sempre juntos e passaram a partilhar do mesmo amor pela música.
Aos fundos uma outra conversa, com as vozes alteradas pela bebida e sabe-se lá qual outro tipo de drogas.
-Eu to te falando. Eu vi Deus. Estava viajando e tocando meu piano e então, Ele apareceu feito de luz e som. Uma imagem incrível e se gravou em minha mente e me libertou.
Marcos tentou ignorar aquele diálogo lisérgico.
-O que você acha uma grande merda, então?- perguntou-lhe Lucas, tentando emendar o assunto.
-Essa porra dessa gravadora. Esse contrato de merda. Não era isso que a gente queria.
Estavam em New Orleans. Há cerca de um ano fizeram um show em uma casa em São Paulo. Um grande show, diga-se de passagem. E o destino os brindou com um figurão americano que lhes propôs, ao custo de suas almas e de alguns meses de suas vidas diria Marcos, um contrato para viverem e tocarem na América. Abririam alguns shows de bandas maiores e gravariam os instrumentos de outras bandas e, enfim, poderiam gravar seu próprio disco e fazer sua própria turnê.
Mas, aqueles “alguns meses” estavam levando tempo demais. E, só haviam começado a gravar seu disco há um mês. E a gravadora insistia em intervir, dando palpites e solicitando modificações. Não bastasse isso, os próprios companheiros de banda estavam criando problemas. Quando não era a excentricidade de um, era a ausência de outro.
O Pingado, apelido carinhoso do baterista que, quando os quatro se reuniram para beber pela primeira vez, quebrando regras e tabus, pediu ao balconista meio copo de café e meio de leite misturados. Enfim, o Pingado arrumara outros trabalhos, colaborando com outras bandas da gravadora, passava mais tempo em viagens do que com a Banda. Era raro quando podia estar junto dos outros gravando. Neste momento, solava dentro da cabine de som.
-Mas, estamos aqui gravando não é?- disse Lucas, embora ele mesmo não estivesse satisfeito.
-E Deus começou a falar comigo, a voz dele parecia uma guitarra distorcida. E ele falou durante horas e quando eu vi, não havia se passado nem cinco minutos- interrompeu Paulo.
-Não fode, Paulo. A gente tá tentando usar o cérebro aqui. Lembra o que é cérebro.
-Porra, Marcos. É Paul.
Marcos se levantou e encarou seu amigo.
-Só há um Paul. E ele é um Beatle.
-Havia. E não é mais. Paul Mcartney está morto. A mídia toda tentou encobrir. Colocaram um sósia no lugar dele para esconder. Eu já te contei. John, meu outro xará, está cheio de remorso. Olha os sinais nas capas dos discos.
Marcos estava cansado de toda aquela bobagem. Quando não era a conspiração envolvendo a suposta morte do Sr. Mcartney, era o envolvimento de Jimmy Page com magia negra, ou então alguma merda esotérica que ele havia aprendido com a hippie com quem fodia. Não bastasse isso, o nome dele era João Paulo. John Paul agora, em homenagem aos seus ídolos. Ah, e não suportava ver o amigo entupido de drogas.
-Cara, eu não tenho tempo para essas merdas.
Uma batida na porta interrompeu aquela discussão. Marcos foi abrir. Um homem de terno, óculos escuros e um estojo lhe sorria. Cheirava a maconha. Outro imbecil para lhe torrar o saco.
-Você deve ser o Sr. Marcos- disse o homem, seu inglês com um forte acento sulista- sou o saxofonista que a gravadora mandou.
-Hã?
-A gravadora não falou com o senhor? Eles me mandaram para gravar umas faixas. Eles disseram que seu som é cru sem o sax.
O rosto de Marcos assumiu uma feição de ódio incontido.
-E ENFIA ESSE SAXOFONE NO SEU RABO- gritava, enquanto chutava o saxofonista para fora do estúdio, inconsciente ao fato de que falava em português e de que o homem não lhe entendia uma palavra sequer.
-Cara, você tá um pouco descontrolado- disse-lhe Paulo- vem cá que eu vou energizar os seus chakras.
-Pro inferno com seus chakras, seu hippie de merda.
Marcos deixou o estúdio. A porta bateu em suas costas e ele acendeu um cigarro. Olhou para sua Harley parada na entrada. Iria a pé. A noite estava ótima e precisava de um pouco de ar.
Eram três da manhã quando Paulo saiu do estúdio. Ele ficou até mais tarde, esperando que Pingado se cansasse dos bumbos e pudesse gravar alguma coisa. Em vão, o Pingado nunca se cansava.
Deu de cara com a Harley do Marcos. Voltou para o estúdio e achou as chaves, deixadas sobre a mesa da TV. Que sorte.
Pegou a estrada. Gritava e uivava como um louco para a lua. Os alucinógenos em sua mente fazendo-o assumir seu lado mais primitivo. Sua bata colorida erguida pelo vento, assim como seus cabelos, loiros e encaracolados.
Largou o guidão. Neste momento, Deus lhe apareceu. Grande e dourado. Feito totalmente de luz e glória. As trombetas dos anjos lhe anunciavam. Paulo, emocionado, abriu os braços para recebê-lo.
-Senhor, a Ti eu me entrego.
Infelizmente, Deus era um Scânia V8 de 350 cavalos.
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Os nossos personagens reservam sempre esse mau-hábito de morrer hein! uashuahush
ResponderExcluirEle não morreu, ele virou anjo =D.
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